Ressaca literária.
Quando ela terminou o livro deixou que o choramingar fosse interrompido pela luz que penetrou a sua caverna. O que raio era aquilo? Abstraída, fechou o livro. Uma mão foi erguida para cobrir os olhos sensíveis à claridade. Com gestos lentos e cuidados, ergueu-se do seu recanto e, sem pensar, foi capaz de colocar um pé à frente do outro, movida pela curiosidade em relação à fonte daquela luz. De onde vinha? E para onde estava ela a ir? Avançou por um túnel comprido, receosa por aquilo que poderia encontrar, momentaneamente esquecida da confusão de sentimentos que ocupava o seu peito. O fio de luz tornou-se mais alcançável, anunciando o fim da bolha que deixava para trás. A saída anunciou o regresso para o mundo real e ela suspirou ao olhar para o livro que levara em mãos. Afinal havia mais do que aquelas páginas continham, havia outro mundo além daquele onde passara os últimos dias.
Corajosa, foi para a cozinha e arranjou um móvel onde pousar a preciosidade que acabara de ler. As mangas foram arregaçadas, luvas foram calçadas e ela pôs mãos à obra: arrumou a loiça limpa, tirou a roupa da máquina e estendeu-a para aproveitar o pouco sol de um dia nublado, abriu a torneira de onde jorrou água quente e começou a lavar pratos. Ela soprou contra um caracol que lhe caíra sobre o rosto e tirou-o do caminho, sentindo-se esquisita enquanto as mãos agiam sobre um pedaço de gordura. Ela não estava bem: havia um vazio no seu peito e as tarefas domésticas tinham um gosto agridoce. Mas ela não era cega. Trocando um prato por um copo, com as mãos cheias de espuma do detergente, ela olhou por cima do ombro e fitou o livro que descansava a um canto da cozinha: imóvel, ainda a fumegar pelo uso (que não fora suficiente). De certeza que se sentia sozinho pelo súbito abandono. Ou isso era ela? Saíra demasiado cedo da bolha. Não lambera todas as feridas nem apaziguara o espírito enternecido por ter absorvido uma história tão boa.
Pouco se importando com a espuma, ela levou as mãos à cabeça. O que raios estava a pensar ao dar-se como pronta a seguir em frente? Ainda era tão cedo. Estava tudo tão fresco na sua cabeça. Uma alma sentida era incapaz de voltar ao real com tanta rapidez sem sequer a aplicação de um bálsamo. As luvas foram arrancadas para marcarem uma posição e, como se a vida dela dependesse disso, correu para alcançar o livro, abraçando-o contra o seu peito como se comprimi-lo contra o coração fosse a poção precisa para diluir a dor, naquele mesmo sítio, provocada pela perda. Sem ter noção do que fazia, encolheu-se sobre si própria enquanto os pés a reconduziam de volta à caverna, de volta ao porto seguro, de volta ao lugar onde as emoções ainda dançavam ao rubro, sensível à invocação de lembranças sobre situações e até pedaços de narração.
Pelo caminho, foi saudada por um bicho. O pobre, bem-disposto, disse-lhe olá e aguentou o próprio sorriso quando percebeu que ela não estava bem, como se ter os cantos da boca repuxados fosse o suficiente para transmitir boas energias. Perguntou o que é que se passava e ela, possessiva, apertou ainda mais o livro contra si, necessitada de tempo para assimilar que o mesmo tinha terminado. E sem parar de andar, pronta a rastejar para o seu canto naquela caverna - se fosse preciso -, respondeu: ressaca literária.